ENCONTRO IMEDIATO COM UMA INSTITUIÇÃO
Tenho tido sempre uma relação difícil com as instituições. O uso do sempre faz-me desconfiar do caracter enviesado da afirmação, das projecções psicológicas, das minhas possíveis crenças inconscientes. Sempre?
Há uma incompreensão quase constitutiva e sistemática entre nós e em que distingo dois momentos:
- no primeiro, essa dificuldade de comunicação abate-se sobre mim. Sinto-me pequena e tola, interiorizo o menosprezo daquilo que de melhor tentei encontrar e partilhar (quando ainda acredito que as partilhas ou os entendimentos se fazem alinhando por cima);
- no segundo, a que chego se um bom vento rebelde ou uma palavra amiga me ajudaram a soltar do primeiro, domina a incredulidade. “Como é possível” reiterado e com múltiplos complementos, em variações de “que algo seja tão estúpido?”
E, porque a política e a subtileza social não são os meus pontes fortes, passam-se por vezes anos em que as instituições e eu trocamos apenas saudações cordiais.
Aconteceu, porém, dias atrás, o encontro imediato.
Depois de uma animada conversa inicial com um representante da instituição, pontuada por sintonias e entusiasmos, focada na capacidade colaborativa, na contributividade, na paixão pelas colecções e pelos processos artísticos no encontro com a Psicologia, chegámos à reunião com a direcção. Descontinuidade absoluta com a experiência anterior: nada vibra. Discutem-se durações, orçamentos, números de participantes - todas as burocracias cinzentas, capazes de sugar a vida a um morto. Nenhum interesse em nada, cubos dentro de cubos, linhas rectas, ausência de cor. Linhas homogénas. Terrível. Não há um golpe de asa, o enquadrar daquele evento num plano maior, um “então e se ainda...” em que não tivesse pensado.
Números são importantes, balizas orçamentais, indubitavelmente. Mas, para mim, essas seriam tarefas administrativas e não de direcção - talvez as atribuições de funções e responsabilidades não consistam no que eu imagino. No meu reduzido entendimento, a administração cuida das burocracias e a direcção de outros voos - não é uma espécie de secretariado glorificado. Não é o lugar onde os sonhos vão morrer... Incluindo os da instituição...
Que será de nós se, em momentos de crise e oportunidade, esta máquina institucional não se aligeira, não se torna permeável ao novo e ao risco? Queremos mesmo que a inovação provenha essencialmente do mundo empresarial? E seremos nós, enquanto IPSS, fundações, institutos, capazes de encontrar um modelo que não seja apenas uma versão tímida do economicismo mais básico? Como podemos permitir-nos, num momento como este, comportarmo-nos como se a actividade das instituições fosse unicamente política, centrada na sua imagem e representação? Por mim, acho-o insuportável. Sufoco no entendimento que as instituições têm das suas próprias funções, na falta de horizonte, na diminuição de si mesmas, nas oportunidades desperdiçadas.
Thoreau afirmava no seu Civil Disobedience, que o Estado não conseguia distinguir os seus amigos dos seus inimigos na medida em qualquer questionamento ou exigência ética era interpretado como um ataque; sinto-me aqui numa posição semelhante. As instituições querem ser deixadas em paz. Que as não incomodem. Que não as interpelem nem as desafiem; que não as exponham a outros critérios de relevância ou ordens de valores. A defensividade extrema das instituições - que, acima de tudo, patrulham as próprias margens - beneficiaria da integração de corpos estranhos, ideias-corpos estranhos, grupos-corpos estranhos.
Talvez fosse o primeiro mandamento prático de uma nova ética para as instituições possa ser:
Buscar voluntariamente a estranheza, o outro que os desinquieta, até que os assusta;
Perguntar-se como pode uma proposta ser expandida em vez de limitada, na perspectiva do proponente;
Abusar de sabedoria poética (tinha paixão?);
(continuem, por favor)
Sonho com o dia em que as instituições ganhem asas; em que as instituições aprendam com os veleiros o momentum do ar; em que dispersem sementes sem pretender controlá-las, inspirados pelos dentes-de-leão. O dia em que as instituições se atrevam, na voz de outro poema, a dançar com abandono - a dançar com ideias: instituições biomiméticas, instituições instáveis, instituições para o fim das instituições, instituições menos super-ego e mais transcendência.
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
Herberto Helder, A Paixão Grega (1-11)