VOO NO BRANCO - Mariana Inverno

Com pés nus, levíssimos e breves como a neve efémera sob a luz solar, entrei na  floresta da foto, perpassada pela luz baixa, o chão da terra amortalhado sob a camada de alvura que a noite nela deixara.  

Entrar é modo de dizer. Adejo 

suavemente pelo ar frio, enquanto  

olho com curiosidade as manchas  

vermelho-escuras, a sobressair da  

brancura. Talvez sangue congelado,  

como o que brota dos corações  

destroçados e que algum solitário ser  

nocturno tenha derramado na sua  

passagem por ali. Por outro lado,  

talvez sejam apenas restos de folhas  

ou de arbustos que os frios invernais  

ainda não tenham consumido de vez. 

Por aqui passaram outrora Odin,  

Freya e os deuses que regulam os  

dias e as estações, dançaram com  

certeza, sob a sua batuta, valquírias  

poderosas e esbeltas, em tempos  

mais acolhedores. Mas o mundo  

antigo profetizava que as forças do  

caos se sobreporiam às da ordem e que,

com escassa sobrevivência de humanos e divinos,

viria a existir um mundo muito  

diferente. 

Hoje, no bosque calado, nada se sente.  

Por onde andarão agora as mãos dadas  

dos que se amam, se a floresta dorme  

de exaustão e apenas acolhe um sol 

tímido e fraco que logo se dissipará,  

dando lugar a mais frio e a um espesso 

manto branco reforçado que em breve 

apagará as marcas sangrentas, os  

arbustos sobreviventes ao frio da  

invernada. Em que buraco, mundo,  

espaço, hibernam hoje os afectos, o  

coração a mirrar no vazio, na  

esterilidade das ausências, um vácuo 

que a lonjura impõe como carrasco  

impiedoso. 

Em tudo isto medito, enquanto voo por  

entre as árvores despidas, a alma 

melancólica como só ela, suspenso o propósito. O voo abre ogivas para poemas de  amor e solidão, eleva-me depois mais alto, acima das copas nuas onde o silêncio soa  como música guardada ciosamente para os que tiverem a coragem de a buscar. Nem o  amigo vento se faz sentir, só esse não-som, desencarnado de realidades terrestres, a penetrar silenciosamente os meus poros, enregelados pelas faltas. 

Dançam no ar estratosférico registos de mil lacrimosas a que o horizonte azulado, a  esta hora, confere nuances alilasadas, como flores caídas, no último fôlego da  existência. Voo, feita espécie de espiral propulsora de uma leveza que me empurra, de  forma espaçada, mais e mais para um reino de hibernação e apartamento do que era o  sol dos meus dias. 

Lá em baixo, o bosque é uma mancha branca, quase indefinida. Lembro-me então que  o fotógrafo ainda lá está, figura amada em crescimento, a lembrar-me que a vida tem  um futuro, um potencial.  

Inicio o voo de volta, beijada pela neve que de novo cai.

Mariana Inverno, in “O Livro dos Afectos” 

Fotos: Sebastião Inverno de Melo Gonçalves

 
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